7 de novembro de 2011

Eurocrise:O preço da mentira

Fontes envolvidas nas negociações contam também que o governo grego só aceitava passar dados por telefone e mentia

07 de novembro de 2011 | 3h 03
JAMIL CHADE, ENVIADO ESPECIAL/ATENAS – O Estado de S.Paulo
Era uma segunda-feira de outono de 2009 quando os economistas da União Europeia em Luxemburgo se deram conta de que algo não fazia sentido nas contas gregas. Pediram explicações e, alguns dias depois, foi o próprio presidente do Eurogrupo, Jean Claude Junker, que disse a seus assessores: “O jogo terminou para os gregos”. De esperança a pária, a Grécia viveu nos últimos dois anos uma tragédia que poucos imaginavam que poderia ocorrer dentro da UE.

Baseado em mentiras, manipulações e um intenso jogo político, os bastidor da crise escancara a fragilidade das instituições europeias, a cacofonia no bloco e um jogo político bizantino. O Estado conversou com pessoas envolvidas nas negociações nos últimos dois anos e obteve acesso a documentos relatando conversas da cúpula do governo.
As informações revelam o esforço de negar a realidade e um permanente jogo para ganhar tempo. Os bastidores também revelam que a preocupação das autoridades já era bem mais antiga do que se imaginava.
Nos meses que antecederam a explosão da crise, os gregos haviam estabelecido um novo modo de operar com as autoridades em Luxemburgo, responsáveis por coletar as estatísticas da UE. Para passar os dados econômicos do país – e seu déficit – nada de fax ou e-mail. Os números eram ditados por telefone, sem qualquer prova por escrito. Durante boa parte de 2009, o número passado aos europeus era de um buraco de 6% do Produto Interno Bruto (PIB). Duas vezes maior que o limite dado pela UE. Mas relativamente administrável.
Em agosto de 2009, o Fundo Monetário Internacional (FMI) já havia elaborado um estudo sobre a Grécia e concluído que o número era falso e que o déficit ameaçava a economia local. Atenas protestou e o FMI foi obrigado a mudar o documento. Pela nova versão, o Fundo alertava que em 2010 o déficit estaria em 7,5%. A dívida seria em 2009 de 90% do PIB. “As projeções são de que o déficit irá se expandir”, se limitou a dizer o FMI.
Mas nem o Fundo parecia ter ideia do tamanho da crise. Previa para 2009 e 2010 uma queda total do PIB de 2%. Por enquanto, a taxa já chega a 11%.
Estarrecido. As revelações do tamanho da crise começaram a se tornar públicas quando o governo de George Papandreou assumiu o poder, em outubro de 2009. Coube ao então comissário de Assuntos Monetários da UE, Joaquin Almunia, convocar o ministro de Finanças da Grécia, George Papaconstantinou, para pedir explicações. O que escutou o deixou estarrecido. Estava claro que a Europa enfrentava uma situação muito mais delicada que os EUA com a quebra do Lehman Brothers. O déficit não era de 6% do PIB. Mas de quase 13%. A dívida pública não era de 90%. Mas de 160% do PIB.
Ao Estado, Papaconstantinou admitiu ontem que nem mesmo naquele momento imaginava o que seriam os dois anos seguintes. “Sabíamos que estávamos em uma situação difícil. Mas ninguém imaginava o que viria pela frente”, disse.
Rapidamente, as informações sobre o tamanho do buraco chegaram a Washington. A Casa Branca despachou para Atenas uma missão do Tesouro americano para investigar o que ocorria. Em reuniões poucos dias antes do Natal daquele ano, o americano Mathew Haarsager foi recebido pela cúpula grega. Uma vez mais, apesar de reconhecer nos bastidores o tamanho do problema, o discurso dos gregos era de que não havia motivo para entrar em pânico e que reformas seriam feitas.
O americano escutou do governo que a possibilidade de um calote era “zero”. Num encontro no dia 21 de dezembro, por exemplo, Papaconstantinou insistia que bastava convencer os mercados e que as reformas levariam o déficit a 4% em 2010. Mas pedia “paciência”. “Implementar as reformas levará alguns meses.” Hoje, a previsão é de que a taxa de 4% será atingida só em 2018.
O então ministro admitiu aos americanos que um discurso de pressão da UE ajudaria a convencer a oposição interna que as reformas deveriam ocorrer. Mas insistia em negar a necessidade de um pacote de resgate, inclusive alertando que seria perigoso até falar sobre o assunto. “No minuto que a UE começar a falar em um pacote de resgate, a Grécia será assassinada pelo mercado”, disse. Naquela reunião, a ideia de recorrer ao FMI estava fora de qualquer cenário.
No mesmo dia, o americano se encontraria com o diretor da Agência de Gestão da Dívida Pública da Grécia, Spyros Papanicolaou, e escutou mais uma vez um discurso negacionista. Para ele, a crise grega estava sendo “exagerada” pela imprensa estrangeira e a “probabilidade de um calote em um ou dois anos era zero”.
Até os bancos privados mantinham o discurso de negar a realidade. O vice-presidente do Eurobank, Nikolaos Karamouzis, insistia que os bancos estavam “bem capitalizados e com boa liquidez”. O que prejudicava era o “déficit de credibilidade” do país. Paul Mylonas, economista-chefe do Banco Nacional da Grécia, chegava a alertar que o país não passaria pela mesma situação da Argentina.
Sangue. O tom das conversas começou a mudar no início de 2010. Em uma turnê pela Europa para dialogar com atores do mercado, as autoridades gregas ficaram surpresas com as exigências. Em um encontro em Bruxelas, os funcionários do Ministério de Finanças foram informados que os bancos estrangeiros e investidores queriam ver “sangue correndo” como resultado das reformas. A ideia era que as medidas de austeridade teriam de ser profundas, mesmo diante da oposição da opinião pública e dos efeitos sociais.
De volta a Atenas, o governo se deu conta que já não conseguia ter o mesmo acesso a empréstimos, apesar de ter uma classificação de risco positiva. Em um encontro em Bruxelas, no mês de abril de 2010, o então ministro de Finanças, Papaconstantinou, fez o primeiro alerta de que a falência era uma possibilidade real. Pediu 9 bilhões para honrar as dívidas que venciam em meados de maio. Nos bastidores, os gregos já diziam: o dinheiro acabou.
Mas então coube à UE se negar a ver a realidade. A estratégia em Bruxelas foi a de pressionar os gregos por reformas e ganhar tempo. O que se seguiu foi uma série de medidas para apagar o fogo. Bruxelas aprovou um primeiro resgate para a Grécia, criou um fundo com 440 bilhões e ampliou a ajuda para Irlanda e Portugal.
Timothy Geithner, secretário do Tesouro americano, não hesitou em alertar os europeus de que isso ainda não era suficiente. Mas esbarrou na resistência alemã, que não queria ampliar a ajuda estatal, temendo justamente perder votos.
O reconhecimento de que a situação precisava de um novo pacote veio apenas em julho de 2011. A chanceler Angela Merkel finalmente entendeu que a Europa corria um sério risco e ganhou apoio interno para assumir responsabilidades. Levou mais de um ano para Berlim entender que o calote parcial da Grécia era uma necessidade. Finalmente em outubro, o pacote foi anunciado, autorizando os gregos a um calote de 100 bilhões.
Jogo. Quando tudo parecia resolvido, Papandreou tentou jogar a última cartada para manter seu partido no poder. Para evitar convocar eleições antecipadas, propôs um referendo para decidir se o pacote era aceito pela população. “Meu Deus. Ele não pode fazer isso conosco”, disse Merkel, ao ser informada.
Berlim não perdoou. O resultado foi uma pressão sem precedentes para permitir a queda de Papandreou. “As ligações de Bruxelas, Paris e Berlim foram constantes nos últimos dois dias para forçar uma definição política na Grécia”, contou ao Estado um membro do gabinete de Papandreou, que pediu anonimato.
Ontem, finalmente, o governo grego caminhava para um governo de união nacional para permitir a adoção do pacote e evitar a falência do país. Mas, para Jason Manolopoulos, autor do livro A Odiosa Dívida Grega, a realidade é que ninguém sairá dessa história com uma boa reputação.
O FMI aceitou não lançar um alerta, a UE aceitou não punir a Grécia, a Alemanha se recusou a adotar um pacote amplo já desde o primeiro momento e os gregos fizeram de tudo para minimizar os problemas.
“Os políticos gregos, a sociedade, sindicatos, líderes da UE, o FMI, os bancos. Todos tiveram uma participação nesse caos que é resultado de uma saga que já leva uma década”, escreveu. Para ele, a situação não é culpa apenas de Atenas. “Como é que as elites em Bruxelas e Nova York erraram de forma tão grosseira a avaliação sobre a situação grega? A resposta poderia nos ajudar a entender não apenas o desastre grego, mas toda a crise financeira que vivemos hoje”, disse. “O que é certo é que todos confiaram em dados falsos.” Ou pelo menos optaram por não ver a realidade.
FONTE-ESTADÃO

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