É comum que se escreva, sempre com algum exagero, que os últimos acontecimentos – sejam de qualquer natureza – mudaram as relações internacionais e as condições estratégicas regionais e/ou globais. Neste início de 2012, contudo, uma visão de conjunto do Oriente Médio/Ásia Central nos mostra que o equilíbrio conseguido com grande esforço depois do fim da Guerra Fria, em 1991, desmoronou. O artigo é de Francisco Carlos Teixeira.
Francisco Carlos Teixeira (*), na Carta Maior
O Oriente Médio em mudança: os grandes impactos
Na ausência de uma expressão mais precisa voltamo-nos para o conceito clássico de Pierre Renouvin de “forças profundas” para destacar as grandes tendências em movimento na região. Nós trataremos agora para os dados concretos da demografia social e religiosa, da situação geográfica, da riqueza disponível e, enfim (mas, de forma decisiva), a orientação da população nas relações vis-à-vis entre as nações ( os diversos sentimentos populares e suas representações ). No caso do Oriente Médio a última década, grosso modo, foi de importantíssimas mudanças. Para facilitar a caracterização de tais mudanças, e apenas para efeito didático, vamos fazê-lo em dois movimentos. De um lado os fatores exógenos que impactaram a região e, de outro, os fatores endógenos que moldam as tendências atuais de mudança e que, por sua vez, impactam as relações globais.
Entre os fatores externos que impactaram duramente as chamadas “forças profundas” na última década estão:
1. A quase total retirada da Rússia do jogo político regional do Oriente Médio (antes forte em países como Iraque, Síria, Yemen, Somália e com grande pressão sobre as bordas da Ásia central, como Irã e Afeganistão); no momento atual sua presença é circunscrita à Síria, um regime em plena crise e que a manutenção do apoio gera um imenso desgaste diplomático, em especial na ONU e frente à opinião pública mundial. O papel de Moscou no “Quarateto Diplomático” é residual, na medida em que o prórpio “Quarteto” está paralisado no seu papel de negociador do conflito Israel-Palestina.
2. A invasão norte-americana, e de seus aliados da OTAN, no Afeganistão em 2001, com um impacto de grandes proporções no Paquistão e no prórpio Irã, além de aumentar as desconfianças da Federação Russa e da China Popular acerca dos interesses americanos em obter uma posição permanente no coração da Ásia Central (uma retomada das teses geopolíticas de Halford Mackinder (1904) e de Nicolas Spykman (1942), originou, depois de 2001, um novo simulacro do “Grand Jeu”, do século XIX[1]. O resultado mais claro foi uma íntima aproximação entre China e Rússia, alterando radicalmente os dados estratégicos do final da Guerra Fria (conflito sino-soviético) e unindo as duas potências asiáticas (Pacto de Shangai [2]);
3. O fracasso das mediações do conflito Israel-Palestina considerado, por muito tempo, um produto da Guerra Fria (1945-1991), mostrou tratar-se, em verdade, de um conflito nacional, enraizado na emergência de um forte sentimento nacional palestino (que se forja largamente em relação direta com a ocupação israelense), diferenciado e autônomo em face dos países árabes (não mais como uma “arma” ou ferramenta manipulada no Cairo ou Damasco contra Israel), e frente ao qual as entidades internacionais tais como a ONU, bem como as iniciativas multilaterais e de mediação (como a Conferência de Madrid [3], os Acordos de Oslo [4], o “Quarteto” [5]e a permanente presença americana) não conseguiram avançar depois dos Acordos de Camp David de 1979;
4. A desastrosa invasão norte-americana do Iraque, em 2003, destruindo boa parte do equilíbrio regional, expresso nas relações Irã-Iraque, Arábia Saudita-Iraque e, mais complexo ainda, entre sunitas e xiitas em toda a região, em especial nas monarquias do Golfo (de regimes sunitas e maiorias xiitas). Além disso, o péssimo desempenho norte-americano (desonroso e ineficaz) no Iraque mostrou ao mundo que nem mesmo uma superpotência como os Estados Unidos podem enfrentar, sem grandes danos, um conflito que cristaliza seu conceito exatamente neste evento, a chamada “guerra assimétrica”. Como corolário, a inépcia americana sob George Bush e a subseqüente “retirada norte-americana” do Iraque com Obama cria em vários estados da região, em especial em Israel e na Arábia Saudita, uma profunda síndrome de insegurança, levando-os a patrocinar um enfrentamento com Irã, antes que este possa consolidar sua recuperação de nação hegemônica na região – papel tradicional dos persas mantido até muito recentemente com o apoio americano ao decaído Xá;
5. A emergência de novos e autônomos pólos alternativos de poder político e econômico, em especial a China Popular e a Índia (e mais recentemente o Brasil), que passaram a desempenhar um papel – ainda modesto, mas assertivo – nas resoluções e nos diversos “fóruns” internacionais sobre o Oriente Médio, além de se apresentarem como clientes, de variadas posições, relativizando o papel das antigas potências coloniais e dos Estados Unidos na região;
6. A crise da Europa – uma crise econômica, política e de instituições da UE – acaba por levar a uma situação de militarização e saturação de iniciativas bélicas na região sul do bloco europeu, tudo em nome do chamado “Princípio de Intervenção Humanitária”, aplicado de forma bélica quando o país alvo não cumpra com a “Responsabilidade de Proteger” (“RtoP” ou “R2P”, conforme a sigla em inglês) seus próprios cidadãos [6]. Assim, de forma direta e indireta (ou seja, usando países interpostos, como o caso das tropas do Kuwait na Líbia) realizaram-se expedições militares na Líbia que prefiguram uma nova possibilidade de “soberania restrita” ou sob vigilância internacional (precedente na situação de Kossovo), com possibilidades de extensão a outros países, como é o caso da Síria.
Fica patente, neste caso, os limites do “RtoP” para os europeus: a “Primavera Árabe” no pequeno e rico Bahrein – sede da 5ª. Frota dos Estados Unidos no Oriente Médio – foi duramente reprimida pela polícia local e, em seguida, por uma “invasão saudita” [7], sem qualquer protesto de Londres ou Paris. Da mesma forma, a repressão aos manifestantes em Riad não merece condenção alguma, visto serem países-pivô do equilíbrio de poder patrocinado pelo Ocidente na região.
7. Como corolário do item anterior, a crise econômica européia, acompanhada de recrudescimento dos setores chauvinistas e racistas nos partidos de centro-direita europeus (França, Áustria, Alemanha, Bélgica, Holanda, Polônia) consolida a recusa – nunca pronunciada – da admissão da Turquia na União Européia. A consciência nacional turca de sua “exterioridade” européia – projeto conservador europeu desde a Primeira Guerra Mundial (empurrar os “asiáticos” de volta para a Ásia) ajuda e incentiva, a partir de então, o desenvolvimento de uma nova “turquicidade”, não mais em choque com a antiga (otomanidade), facilitando a emergência de uma política externa turca de grande ativismo regional.
Estes são fatores de grande impacto sobre o Oriente Médio/Ásia Central que, nos últimos dez ou doze anos, conformaram largamente as relações internacionais na região. Não foram gerados na própria região, possuem profundas raízes históricas na própria dinâmica global, mas tiveram um impacto profundo sobre a região. De forma muito clara, por sua vez, geraram localmente apropriações originais que, por sua vez, darão movimento a tendências locais/regionais de grande alcance.
A crise mundial, desde 2008, com seu impacto direto sobre as economias européias – os clientes e parceiros tradicionais das ditaduras “estabilizadoras” ( quer dizer, sunitas, pro-ocidentais e indiferentes em relação ao destino da Palestina ) – enfraqueceu imesamente o equilibrio anterior. Da mesma forma, as reformas “regressitas” e liberais realizadas nas economias locais (bem antes de atingirem a Europa), destruiram o sistema clientelístico e provedor das elites que conseguiram, com a ajuda da brutal repressão de suas polícias políticas, manter a ordem oligárquica.
Assim, a partir de 2008, com maior expressão ao final de 2010, irrompem inúmeros e incontroláveis movimentos populares, greves e manifestações de rua no imenso arco que se extende do Atlântico, com o Marrocos, até o Golfo Pérsico, no Bahrein, passando pela Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Árabia, Jordânia, Irã e Síria. De forma muito discreta na mída ocidental, mas cusando temor e perplexida, milhares de israelenses vão às ruas em Jerusalém, Haifa e Tel-Aviv exigendo mais moradia e empregos e menos guerra.
É neste contexto que as direções polítcas regionais – tanto no Cairo ou Teerã, quanto em Tel-Aviv ou Riad – correm em direção a uma agudização dos conflitos locais. A rua assusta os governos que então alardeam a ameça externa.
(continua na próxima semana)
NOTAS
[1] Referimos-nos aqui, como “Grand Jeu”, a disputa diplomática e militar entre o Império czarista russo e o Império britânico, entre o final do século XIX e a primeira década do século XX, pelo controle dos planaltos do Pamir, o Tibete e as passagens para a Índia (então o “Raj”, domínio imperial britânico). O “Grande Jogo”, depois de infrutíferas tentativas de invasão britânica do Afeganistão, de seguidas intrigas russas para trazer para sua área de influência o reino de Kabul, concluiu-se – em face da ascensão de um inimigo maior e mais poderoso na Europa (a Alemanha), por um acordo que neutralizava o Afeganistão e entregava o Xinjiang (Turquemenistão chinês) a influência russa e blindava a Índia de uma possível “descida” russa. Hoje, o simulacro de “Grand Jeu” seria a tentativa americana de criar uma brecha na retaguarda estratégica da Rússia e China, ocupando o Afeganistão.
[2] O Pacto de Shangai, ou Organização de Cooperação de Shangai (herdeiro do Shangai Five Group, de 1996) foi criado em 2001 por iniciativa da China Popular e da Federação Russa como um organismo de segurança da Ásia Central e participam as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central.
[3] Reunião promovida pelos Estados Unidos e a então União Soviética, com o co-patrocínio da Espanha, reunindo os governos de Israel, Líbano, Jordânia, Síria e a Organização de Libertação da Palestina para a criação de um marco diplomático e legal de negociações gerais de paz na região.
[4] Os chamados “Acordos de Oslo”, de 1993, foram as primeiras negociações diretas entre as partes em conflito (o governo do Estado de Israel, representado pelo então premier Yitzhak Rabin, e a Organização pela Libertação da Palestina, representada por Yasser Arafat) e deveriam constituir-se no “framework” das relações entre as partes e procedeu a criação da Autoridade Nacional Palestina, embrião do futuro governo nacional palestino. Após a eleição, em 1996, de Benjamin Natanyahu como primeiro ministro israelense, o governo conservador decidiu “interpretar” os acordos do ponto de vista da chamada “ segurança de Israel”, paralisando uma série de medidas que deveriam viabilizar o Estado palestino. Da mesma forma, o Hamas, recusou aceitar os termos dos Acordos. Na prática os Acordos estão em ponto morto.
[5] O chamado “Quarteto” (ou “Diplomatic Quartet”) foi criado em 2002, em conseqüência da Conferência de Madrid para o Oriente Médio, com a missão de mediar o conflito, sendo composto pelos Estados Unidos, União Européia, ONU e Rússia.
[6] O Principio de Responsabilidade de Proteger – altamente questionado por várias nações, entre elas Rússia, índia e China, embora discutido desde a crise de Kossovo, foi aprovado pela ONU em 2005, e consiste em três princípios básicos, a saber: 1.The state has a responsability to proctect his population from mass atrocities; 2. The international community has a responsibility to assist the state if it is unable to protect its population on its own; 3. If the state fails to protect its citizens from mass atrocities and peaceful measures have failed, the international community has the responsibility to intervene through coercive measures such as economic sanctions. Military intervention is considered the last resort. Ver: EVANS, Gareth. The Responsibility to Protect: Ending Mass Atrocity Crimes Once and For All. (Washington DC, Brookings Institution Press, September 2008)
[7] Entre 13 e 14 de março de 2011 cerca de mil tropas especiais da Arábia Saudita, com quinhentos policiais anti-distúrbios, invadiram o pequeno reino do Bahrein para reprimir os protestos populares contra a população (de maioria xiíta) contra a dinastia (sunita) dos Al-Khalifa, que dominam o país como se fosse um feudo privado. A extirpação deste segmento da Primavera Árabe não mereceu condenações do Ocidente.
(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pelo Outro Lado da Notícia